domingo, 9 de dezembro de 2018

VISÃO PENTECOSTAL E INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS

A orientação teológica da qual os cristãos estudam a Bíblia tem uma influência decisiva em suas crenças. Os pentecostais entenderam que as Escrituras só podem ser interpretadas corretamente com a ajuda do Espírito Santo (João 14:26; 16:13; 1 Coríntios 2: 6-16). O Espírito traz vida à Bíblia e a torna real, em vez de meramente uma antiga coleção de literatura. Cremos que o Espírito Santo fala por meio das Escrituras e também fala de acordo com as Escrituras. Ele não vai contra aquilo que Ele mesmo moveu homens santos para escrever.
Os pentecostais apelaram consistentemente à Bíblia como base para sua fé e vida em Cristo. De sua visão de que a Bíblia é de fato a Palavra de Deus e sua experiência do Espírito Santo, surgiu uma abordagem pentecostal das Escrituras e uma teologia pentecostal.

Visão da Bíblia
INSPIRAÇÃO DA BÍBLIA. No coração do pentecostalismo clássico está a convicção de que toda a Bíblia é a Palavra inspirada de Deus. A inspiração está na natureza de Deus porque é o Seu desejo de se comunicar. Ele tomou a iniciativa de compartilhar a Si mesmo com os outros, enviando Seu Filho ao mundo e fornecendo o dom do Espírito Santo. Através das Escrituras, Deus também se revelou à humanidade, pois a Bíblia é a voz de Deus falando através dos séculos. A Bíblia é uma testemunha primária sobre Deus, pois é o discurso de Deus registrado no texto bíblico através da inspiração do Espírito Santo. Ter um encontro com a verdade das Escrituras é ter um encontro com o Deus vivo.
Na escrita da Bíblia, houve plena cooperação entre o humano e o divino. Para ser mais preciso, Deus escolheu unir Suas palavras às palavras dos profetas e apóstolos, e a Bíblia é, portanto, divina e humana. A inspiração da Bíblia permanece um profundo mistério, mas é a voz de Deus. “Toda a Escritura” é inspirada por Deus (2Tm 3.16), embora nós não entendemos exatamente como os profetas e apóstolos ouviram a Palavra do seu Senhor. A Bíblia é inteiramente a Palavra de Deus escrita por humanos. Sempre digo que a Bíblia é a Palavra de Deus em linguagem humana e não as palavras de homens sobre Deus!

AUTORIDADE DA BÍBLIA. O apreço pela inspiração da Bíblia levou os pentecostais a afirmarem ardentemente a autoridade inerente das Escrituras. O reinado da autoridade bíblica vai além das denominações e igrejas pentecostais para a vida pessoal dos crentes. Essa visão da Bíblia tem suas raízes na Reforma, mas no início do pentecostalismo a insistência na autoridade bíblica encontrou expressão no anti-credalismo. Desde então, os pentecostais descobriram por si mesmos o valor de codificar suas crenças básicas para dissuadir a heresia. Com uma apreciação de suas declarações de fé, eles, no entanto, afirmam que os credos têm apenas uma autoridade derivada da autoridade da Bíblia.
Os pentecostais clássicos reagiram à excessiva exaltação da profecia carismática ou à chamada palavra rhema, insistindo que a verdade da profecia carismática seja determinada por sua consistência com a Bíblia. O ministério revelador em curso do Espírito Santo não é visto como um desafio à autoridade bíblica, mas como uma aplicação específica da mensagem bíblica. Qualquer aplicação é limitada pela sujeição à Escritura. Em suma, a Bíblia tem uma autoridade abrangente para fé e conduta. Os pentecostais creem que isso não exclui a profecia em seu contexto de exortar, consolar e edificar.

INFALIBILIDADE DA BÍBLIA. Outro subproduto da alta visão da Bíblia é a infalibilidade das Escrituras. Essa convicção afirma que a Bíblia é confiável para a fé e a prática e que a Bíblia declara exatamente a verdade que o Espírito Santo deseja transmitir.
Os pentecostais procuraram evitar dois excessos. Primeiro, eles negaram a avaliação liberal que vê a Bíblia como um documento repleto de erros humanos em meio a Escrituras que são inspiradas. Tal visão enfraquece a autoridade bíblica porque deixa o intérprete com a tarefa de separar o fato da ficção e a verdade do erro. Em segundo lugar, os pentecostais não chegam a uma visão fundamentalista extrema da Bíblia como um depósito estático da verdade que o intérprete aborda apenas pela razão e pela lógica humanas. Sendo livres para examinar quaisquer dificuldades percebidas da Escritura, os pentecostais evitam recorrer a uma postura defensiva, como muitos fundamentalistas assumem. Enquanto os pentecostais acreditam na infalibilidade da Bíblia, eles reconhecem que eles não têm nem a capacidade nem a responsabilidade de tentar provar essa infalibilidade. Porque a Bíblia é inspirada por um Deus infalível, é infalível. Para os pentecostais, nenhuma outra demonstração adicional da infalibilidade da Bíblia é necessária ou imprescindível.

Interpretação
Estudiosos pentecostais contemporâneos estudam a base gramatical e histórica das Escrituras, mas eles não interpretam a Bíblia como qualquer outro livro. Informações factuais derivadas de gramática e história ajudam a criar um contexto comum para entender o que o texto bíblico significa. O intérprete entende que o significado da Palavra de Deus não é estritamente determinado por um sistema lógico fechado, semelhante à matemática. A tentativa de explicar o significado da Bíblia apenas com base na razão e nas habilidades tendem a ver as Escrituras como apenas uma coleção de documentos do mundo antigo a ser estudada e interpretada como qualquer outra obra literária. A verdade da Bíblia não depende da nossa resposta a questões literárias e históricas, mas tal estudo amplia e torna mais precisa nossa compreensão da Bíblia e como ela foi dada à humanidade (G. E. Ladd, The New Testament and Criticism).
O perigo é o método de colocar a Bíblia nas mãos do especialista e tirá-la das mãos da pessoa comum. A compreensão espiritual nem sempre espera pela aquisição de ferramentas para análise gramatical e compreensão histórica. É o Espírito Santo que abre os olhos da fé e ilumina a Palavra de Deus para o coração humano. Para apreciar a dinâmica da interpretação pentecostal, vamos agora considerar como o texto bíblico está envolvido.

O ESPÍRITO SANTO E INTERPRETAÇÃO. O método pentecostal de interpretação é essencialmente pneumático ou charismático. Em outras palavras, o intérprete baseia-se na iluminação do Espírito Santo do texto bíblico, a fim de chegar ao mais completo entendimento do texto. A Escritura é dada pelo Espírito e é melhor compreendida pela ajuda do Espírito. A iluminação do intérprete pelo Espírito é uma parte vital da compreensão do significado atual do texto bíblico [é neste ponto que Calvino foi considerado o "teólogo do Espírito Santo"]. O Espírito Santo tem um papel mais amplo no processo de interpretação do que simplesmente pegar as coisas do Cristo encarnado e declará-las para nós (João 16:14). A própria Bíblia cobre mais de mil anos e foi concluída mais de mil e novecentos anos atrás. Existe uma grande distância no tempo e na cultura entre os autores antigos e os leitores modernos da Bíblia. A distância tem que ser respeitada, mas o Espírito Santo supera a lacuna no tempo e na cultura. O Espírito Santo faz isso servindo como um contexto comum e ligando o tempo e a distância cultural entre o autor original e o intérprete moderno. Em outras palavras, o Espírito ilumina o que as palavras do antigo autor significam para nós que vivemos no século XXI. Através do Espírito, a Palavra de Deus se torna viva, eficaz e fala à nossa situação com novas possibilidades de transformação pessoal e social.

O método pentecostal de interpretação vai além do significado literal das Escrituras. [Sem contudo, negligenciá-lo]. O significado mais profundo do texto bíblico não é dado através da mera razão humana, porque o Espírito Santo desempenha um papel definido na interpretação e aplicação contemporâneas. As sugestões a seguir podem indicar como o intérprete confia na iluminação do Espírito para chegar a um entendimento completo do texto bíblico: (1) uma experiência pessoal de fé como parte de todo o processo interpretativo; (2) submissão da mente a Deus para que as habilidades críticas e analíticas sejam exercidas sob a orientação do Espírito Santo; (3) uma genuína abertura ao Espírito Santo à medida que o texto é examinado; (4) resposta ao chamado transformador da Palavra de Deus (French L. Arrington, "Hermenêutica").
É impossível penetrar no coração da mensagem bíblica à parte do Espírito Santo. Paulo enfatiza a importância do Espírito Santo para a interpretação: “O olho não viu, nem ouviu o ouvido, nem penetrou no coração do homem as coisas que Deus preparou para os que o amam”. Mas Deus nos revelou através do Seu Espírito” (1Coríntios 2.9-10a).
O Espírito que revelou é o mesmo que ilumina no processo da compreensão do texto bíblico, aplicando poderosa e salvadoramente as verdades escriturísticas.

EXPERIÊNCIA E INTERPRETAÇÃO. Outra faceta da interpretação pentecostal é a dimensão experiencial. Aqui há duas questões inter-relacionadas distintas: (1) a maneira pela qual a verdade é extraída das Escrituras impacta o encontro pentecostal; (2) o reconhecimento de que a experiência pessoal e corporativa são importantes para o processo interpretativo.
Experiência extraída da interpretação das Escrituras. A fé de alguém não é meramente uma aceitação intelectual, mas é uma resposta vivida em relação ao Espírito Santo. Para os pentecostais, a Bíblia não é estudada de maneira independente, mas eles entram nas experiências apostólicas dos crentes do primeiro século e percebem a presença real de Deus. O veículo para tais encontros é o novo derramamento do Espírito no século XX. Essa “chuva tardia” do Espírito permite que os crentes participem das experiências da igreja do Novo Testamento. Enquanto qualquer pessoa com faculdades e habilidades racionais suficientes pode colher a verdade das Escrituras, insights reais sobre as verdades da Palavra de Deus vêm da fé e do Espírito Santo.

Experiência informando interpretação das Escrituras. Um testemunho comum dos primeiros pentecostais foi que eles haviam recebido “seu Pentecostes”. A experiência de Atos 2 é apropriada na vida dos pentecostais, e sua suposição é que falar em línguas não é o único paralelo entre a experiência deles e a dos primeiros cristãos. Também estão incluídas todas as manifestações sobrenaturais atribuídas ao Espírito no Novo Testamento - tais como exorcismos, cura divina, milagres, sonhos, visões e todos os dons do Espírito. Consequentemente, os pentecostais esperam que o modo da presença de Deus seja o mesmo agora nos tempos bíblicos.

Relação de interpretação e experiência. Os pentecostais têm sido acusados de colocar suas ideias e experiências à frente das Escrituras e escolher e selecionar textos que concordem com sua experiência. Ao contrário, é o Espírito que opera através da Palavra de Deus que inflama a fé e a experiência pentecostal. Os pentecostais têm derivado suas doutrinas não de encontros pessoais, mas da Bíblia. Por exemplo, foi o estudo bíblico indutivo (semelhante ao evento da Reforma sob os auspícios de Lutero) que levou à doutrina do batismo no Espírito na virada do século XX em Topeka, Kansas. Esta doutrina foi confirmada pelo testemunho pessoal de Agnes Ozman, que foi a primeira pessoa a receber o batismo no Espírito no Bethel Bible College.

A experiência é importante para a interpretação da Bíblia. No processo de interpretação, há uma interação entre a Escritura e a experiência (MOORE, Rickie D. “Aproximando-se da Palavra de Deus Biblicamente: Uma Perspectiva Pentecostal”, Ponto de Vista do Seminário). O que os pentecostais encontram na Bíblia informa suas crenças e práticas, e eles passam a reconhecer que o que eles encontram na Palavra de Deus informa seus encontros com Deus. Escritura e experiência estão interligadas. As verdades das Escrituras não são verdades contemplativas, removidas da experiência real. Pelo contrário, a experiência é colocada em diálogo com as Escrituras. Existe, portanto, uma dinâmica contínua de interpretação da experiência pela norma da Escritura (JOHNS, Cheryl Bridges, Conscientização Afetiva: uma reinterpretação pentecostal de Paulo Freire).
No entanto, há um inegável potencial para a má interpretação surgir no diálogo entre a Escritura e a experiência. Pessoas que dizem ser guiadas pelo Espírito podem cair em heresias chocantes. Para evitar os excessos na interpretação e contra os encontros pessoais que substituem as Escrituras, a participação ativa é vital na comunidade Pentecostal, onde os membros estão unidos em amor e responsabilidade e “testam os espíritos” (1 João 4.1).

Narrativa e interpretação histórica. Lucas e Atos são livros históricos, mas Lucas, autor de ambos, escreveu narrativas inspiradas não apenas para registrar a história, mas também com o propósito de ensinar doutrina. 2ª Timóteo 3.16 declara explicitamente que toda a Escritura é proveitosa para a doutrina. Tanto Jesus como Paulo ensinaram que as narrativas históricas têm uma função de ensino e apelam às narrativas do Antigo Testamento para uma base autoritária para a doutrina (Marcos 2:25-26; 10:6-9; Romanos 15:4; 1 Coríntios 10:1-11). Narrativa compõe mais da Bíblia do que qualquer outra forma literária. A menos que as narrativas ensinem doutrina, não há razão para ter quatro evangelhos na Bíblia. Mas, Jesus ensinou e fez tanto que nenhum dos Evangelhos nos diz tudo sobre Ele e Seus ensinamentos. Em vez disso, cada escritor do Evangelho enfatiza certos pontos sobre o Senhor, assim como fazemos na pregação. Tomamos um texto e enfatizamos alguns pontos do texto, mas nem tudo na passagem. Os escritores dos Evangelhos, sob a orientação do Espírito Santo, foram seletivos e, a partir de suas narrativas, aprendemos não apenas fatos históricos, mas também doutrina. O mesmo vale para o livro de Atos. A intenção de Lucas não era apenas registrar a história, mas ensinar doutrina. (Lucas deve ser respeitado não apenas como um historiador autêntico, mas também como um teólogo competente. Por isso, deve-se entender seus escritos à luz de sua perspectiva teológica e não à luz de outros, também, competentes escritores do Novo Testamento. Isso nos trará, nas palavras de James Dunn, “unidade (teologia bíblica global do Novo Testamento) na diversidade (teologia individual) do Novo Testamento”).
As narrativas de Lucas em Atos servem de base para duas doutrinas pentecostais primárias de subsequência e a evidência inicial. Em particular, cinco passagens de Atos formam o fundamento bíblico para essas duas doutrinas. Eles são a narrativa sobre o Pentecostes (cap.2), o Pentecostes Samaritano (cap.8), o chamado e conversão de Paulo (cap.9), o Pentecostes Gentil (cap.10) e o Pentecostes Efésios (cap.19). Cada relato registra uma experiência de batismo no Espírito recebido pelos primeiros crentes e fornece suporte para a doutrina da subsequência, que ensina que a experiência do batismo é distinta e separada da experiência de conversão. Além disso, em três dos relatos de Atos, falar em línguas é explicitamente mencionado como a evidência do batismo do Espírito, e os outros dois relatos implicam fortemente em glossolalia. Em Samaria, a reação de Simão Mago implicitamente sugere que ele percebeu que os crentes samaritanos receberam o poder do batismo do Espírito, porque parece que eles falaram em línguas (8:18-19). Também, línguas não são mencionadas quando Ananias impôs as mãos sobre Paulo e o apóstolo ficou cheio do Espírito (9:17), mas ele deve ter falado em línguas na imposição das mãos de Ananias, à luz de seu comentário aos coríntios, “Eu falo em línguas mais do que a todos” (1Coríntios 14:18). As narrativas bíblicas apoiam as doutrinas da subsequência e evidência inicial[1].

Concluímos afirmando que o pentecostalismo se tornou um movimento global no qual existem muitos atores e tradições locais. O crescimento desse movimento tem sido maciço com seus esforços para restaurar o cristianismo primitivo, a adoração exuberante, a abertura aos sinais e prodígios bíblicos e a ênfase na vida cristã diária. Para dizer o mínimo, há uma grande diversidade no movimento hoje, e vários grupos e igrejas se afastaram de alguns aspectos do sistema tradicional de crenças dos primeiros pentecostais, de modo que há uma questão sobre se o termo pentecostal se encaixa neles, especialmente no sentido clássico.

Ivan Teixeira
Pentecostal de Mente e Coração.




[1] ARRINGTON, French. Issues in Contemparary Pentecostalism. Copyright © 2012 pela Pathway Press. 1080 Montgomery Avenue, Cleveland, Tennessee 37311).

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