A independência teológica de Lucas.
É crença geral entre os estudiosos que Paulo
se tornou o principal teólogo e intérprete do Novo Testamento. Como resultado,
os escritos de Lucas sobre o Espírito Santo são interpretados pela ótica de
Paulo e não do próprio Lucas. Isso é o que James
Barr chamou de “transferência ilegítima de identidade”.
Os estudiosos geralmente definem a
característica frase de Lucas “batizado no Espírito Santo” de acordo com o
significado de Paulo. Esses estudiosos da teologia paulina entendem que o
“batismo no Espírito Santo” descrito por Lucas é idêntico ao “batismo em um só
corpo” descrito por Paulo.
Essa metodologia interpretativa que lê Lucas
como se fosse Paulo é totalmente absurda.
“Batizado no Espírito” = Lucas 3x e Paulo 1x;
“Cheio do Espírito Santo” = Lucas 11x e Paulo
1x.
Para Lucas, o Espírito Santo não se relaciona
à salvação nem à santificação, como é comumente afirmado, mas exclusivamente a
uma terceira dimensão do serviço de vida cristão, revestimento de poder para
pregar e ser testemunha ousada do Cristo ressurreto. Paulo está
proeminentemente preocupado com a incorporação em Cristo, pelo qual os crentes
se tornam membros do Corpo de Cristo e um do outro (1Co 12.13).
As Escrituras nos ensinam a total compreensão
das relações doutrinárias do Espírito Santo: Ele está relacionado à salvação
(início da vida cristã); a santificação (crescimento da vida cristã) e ao
serviço (capacitação para o trabalho missional).
A teologia de Lucas do Batismo no Espírito
tem certo enfoque “carismático” e missiológico (empoderamento para o serviço
bem-dotado). Lucas está preocupado com o poder para o testemunho (At 1.8)[1].
A doutrina do batismo do Espírito de Lucas é
“carismática”, tendo a ver com o fortalecimento divino da igreja como uma
testemunha viva, enquanto a de Paulo é primariamente soteriológica, tendo
fundamentalmente a ver com estar em Cristo.
Também vale a pena destacar a diferença
teológica do tratamento que Paulo e Lucas se valem, ou seja, os propósitos para
os quais Lucas e Paulo empregam o tratamento do falar em línguas. O interesse
de Paulo (1Co 12 e 14) está na função prática do dom na adoração pessoal e
especialmente na assembleia; o interesse de Lucas é o significado teológico das
línguas como evidência do batismo com o Espírito Santo, o recebimento do dom, o
cumprimento da promessa do Pai e o revestimento de poder para testemunhar de
Jesus Cristo (At 1.5,8,33,38; 10.46; 11.16-17; 19.6).
Paulo e Lucas não estão em desacordo, mas se
completam no tratamento do mesmo dom (línguas). Cremos que ambos tinham em
vista as mesmas comunidades. Lucas era companheiro e médico amado de Paulo.
Craig S.
Keener faz a seguinte observação:
A ênfase de
Lucas controla a maioria das diferenças teológicas [entre Paulo e Lucas]:
porque as línguas funcionam como um sinal de poder para testemunhar às nações
(1.8), elas são particularmente úteis para Lucas, que as enfatiza especialmente
como uma atividade inaugural e em um ambiente multicultural. As Línguas faladas
serve a uma função narrativa mais exaltada para Lucas, como prova simbólica do
fortalecimento da igreja para proclamar Cristo através das culturas[2].
Então, deve-se notar que cada escritor
bíblico teve suas intenções, propósito ou propósitos e ênfases distintas quando
escreveram sobre a Pessoa e a Obra do Espírito Santo. Tais teologias não se
digladiam no campo bíblico, mas se completam e se harmonizam como uma grande
orquestra composta de muitos instrumentos.
Lucas, por exemplo, geralmente enfatiza a dimensão
mais associada à inspiração ou poder profético (incluindo milagres e inspiração
para o culto). João inclui tanto a
dimensão profética (especialmente no material de Paracleto) quanto a ênfase na
purificação espiritual (dominante principalmente nos capítulos anteriores ao
material de Paracleto). Marcos
parece destacar o Espírito muito menos no geral, mas o posicionamento de metade
de suas menções ao Espírito na sua introdução indica o significado da
pneumatologia para Marcos também[3].
Respeite Lucas Como Um Teólogo Legítimo E
Competente!
Certamente você como eu já falamos esta
frase: “Você não me entendeu!”, ou “Você distorceu o que eu disse!”, e ainda:
“Esse não foi o significado que quis transmitir ao usar esta palavra ou frase!”,
também: “Você tirou minha frase ou palavra do contexto de minha fala ou
escrita!”. Lucas foi vítima disso, pois muitos teólogos paulino desconsideraram
o contexto das palavras ou frases de Lucas e ignoraram sua perspectiva
teológica, principalmente o da expressão que lhe é peculiar: “batismo com o
Espírito Santo” (cf. Lc 3.16; At 1.5; 11.16).
É notório que a teologia protestante ou
reformada, sob a influência de Lutero
e Calvino, havia sido reduzida à
teologia paulina. A riqueza desses maravilhosos insights paulinos não deve ser
minimizada. No entanto, o cânon do Novo Testamento é um pouco maior que as
epístolas de Paulo. Por meio de sua abordagem narrativa simples ao livro de
Atos, os pentecostais puderam integrar os insights significativos de Lucas com
os de Paulo, João e outros escritores inspirados do Novo Testamento. O
resultado foi uma leitura mais completa e holística do Novo Testamento[4].
Essa metodologia interpretativa que lê Lucas
como se fosse Paulo é totalmente absurda.
A situação complica quando você se
familiariza com este material paulino e acaba ficando condicionado a esta visão
que não enxerga as diferentes perspectivas teológicas de cada escritor bíblico.
Posso acrescentar que ao ler certos teólogos do Novo Testamento ou comentaristas
que negligencia a teologia carismática de Lucas enfatizando ou elencando apenas
certos temas preferidos você acaba condicionado a este tipo de tratamento que
mesmo lendo o Evangelho de Lucas ou Atos dos Apóstolos você acaba não dando
importância a visão pneumatológica de Lucas. Isso é trágico, pois a teologia do
Espírito Santo descrito por Lucas é grandiosa e distinta para a teologia do
Novo Testamento.
Entretanto, graças a Deus que Ele tem
capacitado estudiosos competentes para perceber a individualidade e perspectiva
da teologia de Lucas nos seus dois preciosos livros, Lucas-Atos. Desde a
compreensão de que Lucas não é simplesmente um historiador competente, mas
também um teólogo competente pelo estudioso do Novo Testamento I. Howard Marshall, a teologia
carismática de Lucas tem sido legitimada, por assim dizer. Ou seja, antes os
estudiosos de Paulo viam as referências lucanas ao Espírito Santo pela
perspectiva teológica de Paulo como que se referindo a obra do Espírito Santo
na vida cristã, um batismo para incorporação do regenerado no Corpo de Cristo
(cf. 1Co 12.13). Daí nós podemos ver a razão que muitos compreendem a expressão
“batismo com o Espírito Santo” somente pela ótica paulina, negligenciando assim
a perspectiva de Lucas de que o “batismo com o Espírito Santo” é um
revestimento de poder para testemunhar ousadamente de Jesus Cristo como
Salvador e Senhor exaltado. No lugar de se entender cada escritor bíblico no seu contexto,
entende-o na perspectiva e contexto doutro escrito bíblico sobrepondo assim as
teologias de cada um deles. É sábio entender cada escritor no seu próprio
contexto entendendo suas perspectivas e significados dos termos que lhes são
peculiares. Um exemplo famoso de sobreposição de teologias é o de Lutero com
relação a belíssima Epístola de Tiago que ele chamou de “Epístola de palha”.
Pensando que Tiago usava a expressão “justificação pelas obras” no mesmo
sentido de Paulo nas Epístolas de Romanos e Gálatas, Lutero, por assim dizer,
descartou Tiago E é claro que para muitos teólogos Paulo sempre terá a primazia
na teologia. Isso é um grande erro!
Agora, depois do Movimento Pentecostal e
etc., muitos estudiosos de Paulo transferem seu entendimento do “batismo em um
só corpo”, que deve ser entendido no seu contexto de regeneração (Rm 6.3; 1Co
12.13; Gl 3.27; Ef 4.5), para a perspectiva de Lucas do “batismo com o Espírito
Santo”. Isso é claramente um erro! Cada escritor bíblico deve ser entendido em
suas respectivas teologias para que possamos no final, por assim dizer, ouvir
essa grande orquestra, com diversos instrumentos (perspectivas teológicas),
tocar harmoniosamente as grandes verdades teologais. Isso é maravilhoso, pois
as teologias de cada escritor bíblico são unidas e harmonizadas no todo da
revelação de Deus. Temos diversos autores humanos enfatizando aspectos
importantes da verdade, mas um Único Autor Divino regendo esses grandes músicos
teológicos do cânon sagrado.
Na teologia de Lucas o “batismo com o
Espírito Santo” (Lc 3.16At 1.5; 11.16) é visto como o cumprimento da “promessa
do Pai” (At 1.4-5; cf. Lc 24.49), “receber poder ao descer o Espírito” (At 1.8),
“revestimento de poder do Alto” (Lc 24.49), “cheios/cheio do Espírito Santo”
(At 2.4; 4.8,31), “derramamento do Espírito Santo” (At 2.17-18), “a promessa do
Espírito Santo” (At 2.33), “o dom do Espírito Santo” (At 2.38), “a promessa
para todos quantos o Senhor nosso Deus chamar” (At 2.39), “cair o Espírito
Santo sobre” (At 10.44) e etc., Para Lucas o Espírito Santo age poderosamente
sobre os crentes a fim de capacitá-los para pregação do Evangelho e para uma
vida de poder em meio aos desafios e dificuldades atraídas pela confissão de
Jesus Cristo.
Lucas usa vários termos ou expressões para
descrever essa poderosa e necessária obra do Espírito Santo. Certo teólogo
acertadamente comenta:
Não parece
importar muito como se expressa isso. Pedro diz que o Espírito “caiu” sobre
Cornélio e sobre os que estavam com ele “como também sobre nós, no princípio”
(At 11.15), apesar de o mesmo verbo não ser usado em Atos 2. Sejam quais forem
as palavras, a grande verdade é que Deus, em Cristo, concedeu o Espírito aos
que depositam sua fé n’Ele, e essa dádiva do Espírito Santo é a capacitação
necessária para o serviço cristão. Desse ponto em diante, Atos está cheio de
relatos do que as pessoas fizeram quando o Espírito Santo estava agindo nelas e
por meio delas[5].
Pelos relatos de Lucas entendemos que o
batismo com o Espírito Santo, o derramamento do Espírito Santo, ser cheio do
Espírito, não era meramente uma menção a regeneração ou batismo num só corpo,
como na visão de Paulo, mas sim um revestimento de poder para testemunhar
ousadamente de Jesus Cristo como Salvador e Senhor exaltado, que muitas vezes é
evidenciado pelo falar em línguas (cf. At 2.4; 10.36; 19.6). Também creio que o
batismo do Espírito Santo pode ser evidenciado por outros dons do Espírito
Santo conforme descrito por Paulo em 1ª
Coríntios 12. Ampliando mais o nosso entendimento, também creio que o
batismo com o Espírito Santo pode ser evidenciado por uma ousadia incomum de
pregar o evangelho como aconteceu com Pedro; esse batismo pode ser evidenciado
por uma experiência sobrenatural de santificação (como descrito na tradição
wesleyana) e por outras experiências oriundas do Espírito Santo. As línguas são
apenas uma evidência inicial e não única do batismo com o Espírito Santo. Há
muito mais neste precioso e necessário batismo!
Concordo com o grande pregador Lloyd-Jones quando escreve:
O perigo,
porém, está em pensar no batismo do Espírito Santo só em termos de dons, e não
em termos de algo muito mais importante, ou seja, afinal de contas, o sinal ou
prova de que já recebemos ou não o Espírito consiste, seguramente, em algo que
ocorre na esfera de nossa experiência espiritual. Vocês não podem ler os
relatos do Novo Testamento sobre pessoas a quem o Espírito vinha, as pessoas
sobre quem Ele descia, ou
que O recebiam como os cristãos gálatas e todos esses outros, sem compreender
que o resultado era que todo o seu espírito era inflamado totalmente. O Senhor
Jesus Cristo Se lhes tornava real de uma forma que jamais haviam experimentado
antes. O Senhor Jesus Cristo Se lhes manifestava espiritualmente, e o resultado
era a explosão de um grande amor por Cristo, profusamente derramado em seus
corações pelo Espírito Santo.
Isso também é resultado do batismo ou
derramamento do Espírito Santo sobre todos aqueles que creem. Nós não podemos
limitar o Espírito Santo pelo nossa teologia finita ou pela nossa experiência
limitada. O Senhor Jesus Cristo disse: “O vento sopra onde quer!” (Jo 3.8).
Você e eu não podemos limitar as ações do Espírito Santo! Mas, nunca devemos
atribuir ao Espírito Santo certas loucuras da contemporaneidade.
Parece que Lucas sempre é rejeitado quando se
requer a prioridade no entendimento pneumatológico.
Por exemplo, certo teólogo comentando sobre João 20.22, conhecido como o Pentecostes
Joanino, afirma que entre os estudiosos há o problema de entendimento sobre que
“relação há entre o sopro do Espírito Santo com o derramamento do Espírito
Santo em Pentecostes”. Ele escreve que uma das sugestões é afirmar que “o
relato de João é irreconciliável com o de Lucas, e este deve ser, portanto,
considerado como uma invenção”[6].
Mesmo que particularmente creio que ambos os relatos são textos inspirados
(soprados por Deus), atrevo-me a fazer a pergunta: “Por que não rejeitar o de
João?”. “Por que não darmos um pouquinho de crédito a Lucas para falar sobre
sua perspectiva carismática em teologia?”.
Parece que as pessoas têm medo do poder e dos carismas do Espírito Santo
manifestos nas igrejas! Concordo com afirmação de Donald Guthrie: “No entanto, o relato de João não pode suplantar o
derramamento histórico em Pentecostes”[7],
registrado por Lucas.
Louvamos a Deus porque Ele tem levantado
estudiosos capazes para descrever e argumentar proficuamente sobre a
importância da identidade teológica de Lucas na pneumatologia. Nós pentecostais
não rejeitamos as perspectivas pneumatológicas de João, Paulo e etc., mas
entendemos a importância de se convidar Lucas para a cátedra pneumatológica das
Escrituras e ouvi-lo em seus distintivos doutrinários.
IVAN TEIXEIRA
[1] MACCHIA, Frank D. Baptized in the Spirit: A global
pentecostal theology, p.18. Grand Rapids, Michigan 49530: Zondervan, 2006.
[2] KEENER, C. S.
(2012–2013). Acts: An Exegetical
Commentary & 2: Introduction and 1:1–14:28 (Vol. 1, p. 815–816). Grand
Rapids, MI: Baker Academic.
[3] KEENER, C. S.
(2010). The Spirit in the Gospels and
Acts: Divine Purity and Power (p. xi). Grand Rapids, MI: Baker Academic.
[4] MENZIES, Robert P. Speaking in Tongues: Jesus and the
Apostolic Church as Models for the Church Today, p.28. Cleveland, Tennessee: USA,
[5] MORRIS, Leon. Teologia
do Novo Testamento, p.233. São Paulo, SP, Brasil: Edições Vida Nova, 2003.
[6] GUTHRIE, Donald. Teologia
do Novo Testamento, p.538. São Paulo, SP, Brasil: Cultura Cristã, 2011.
[7] GUTHRIE, Donald. Teologia
do Novo Testamento, p.538. São Paulo, SP, Brasil: Cultura Cristã, 2011.
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