sábado, 30 de janeiro de 2021

TEOLOGIA PNEUMÁTICA

 


A importância da doutrina do Espírito na construção das demais doutrinas

Rumo a uma teologia pneumatológica

 

Precisamos de uma pneumatologia constitutiva, e não meramente adornativa no Sistema teológico. Constrói-se todo o sistema da Teologia em categorias teontológica e cristológica, tornando a pneumatologia como algo extra, um adendo, uma pincelada para prover simetria e equilíbrio ao design teológico. Pronto, terminou o trabalho Sistemático agora vamos adorná-lo pneumatologicamente!

Abraham Kuyper lamentou no final do século 19: “Apesar de honrarmos o Pai e crermos no Filho, quão pouco vivemos no Espírito Santo! Às vezes até pode parecer que para a nossa santificação concede-se o Espírito Santo apenas por acidente à grande obra da redenção”[1]. Nota-se claramente o trato tímido do Espírito nas doutrinas bíblicas pelos Sistemáticos. Apesar de se ver um tratamento mais extenso do Espírito de per si na Teologia Sistemática de Wayne Grudem[2], percebe-se logo a ausência do tratamento do Espírito relacionado às demais doutrinas.

É quase geral ver a doutrina do Espírito Santo como um pensamento posterior de nossa teologia, por isso se ver o súbito rebaixamento do Espírito em nossas orações, pregação, ensino, louvor e outros aspectos da vida e ministério cristão.

Evidentemente, o Pai é Deus, e os protestantes fiéis lutaram firmemente a favor da divindade plena do Filho. Entretanto, é comum que o Espírito seja considerado apenas um facilitador do nosso relacionamento com o Pai e o Filho. Contudo, o Espírito Santo é plenamente Deus no mesmo sentido que o Pai e o Filho? O Credo Niceno às vezes nos faz parar para refletir quando dizemos que o Espírito “juntamente com o Pai e o Filho é adorado e glorificado”?[3] Sim ou não? Alguns temem adorar o Espírito!

Agora pense comigo: se a tendência de alguns é considerar o Filho inferior ao Pai, então com certeza a Terceira Pessoa descerá um nível ainda mais baixo na escala da divindade. Muitas seitas já despersonalizaram o Espírito, e muitos cristãos estão inferiorizando consciente ou inconscientemente o Espírito. Quando vejo pastores e teólogos depreciando a obra do Espírito na vida de cristãos com críticas infundadas e desavisadas, preocupo-me com o rumo tomado pelo púlpito e pela cátedra.

Meu empenho como pentecostal é explorar o papel distinto do Espírito Santo em todas as obras externas da Divindade no plano da redenção do mundo e da humanidade. Leio a Bíblia atentamente procurando entender o que ela diz sobre o Espírito para poder ouvir o que o Espírito diz às igrejas para depois pregar o que Ele diz para as igrejas. Se ouvirmos o que a Bíblia diz sobre o Espírito, escutaremos o que o Espírito nos diz. Quando a igreja ouve a Bíblia, ela escuta o que o Espírito diz. O Cristo glorificado nos ordena a ouvir a voz do Espírito às igrejas. Uma igreja que não ouve a voz do Espírito, desobedece ao Cristo glorificado!

O Espírito Santo não é um soprinho como uma brisa mansinha e dócil, Ele se manifestou na Era da Igreja como um som estrondoso como de um vento veemente e impetuoso. Isso quer dizer que o Espírito Santo não é domesticado pelas nossas teologias, muito menos barrado pelo nosso denominacionalismo, ou ainda manipulado pela nossa agenda. Todos devem saber que esse som estrondoso como de um vento veemente e impetuoso não se deixa domar ou domesticar, Ele sopra – e sopra poderosamente – onde quer!

É dispensável teologias sem uma ênfase distinta pneumatologicamente. Da Divindade à criação o Espírito está bem presente. O Espírito Santo é apresentado logo no segundo versículo da Bíblia (Gênesis 1.2), realizando um papel distinto na criação. Não se pode nem começar a tratar da pessoa e obra de Cristo (cristologia) à parte do papel do Espírito em Sua encarnação, ministério, milagres, pregação, obediência, morte e ressurreição. O Espírito está ali, e bem presente. Foi o Espírito que gerou o corpo humano do Verbo no ventre de Maria.

Concordo pungentemente com o teólogo Michael Horton: “Qualquer doutrina bíblica autêntica a respeito da criação, da providência, da pessoa e obra de Cristo, da Escritura, da pregação, dos sacramentos, da igreja e de escatologia deve incluir um relato robusto da ação do Espírito”[4]. Menos do que isso, é expor teologia trôpega. Não se pode falar do Pai sem o Filho e nem do Filho sem o Pai, muito menos falar do Pai e do Filho sem o Espírito. Não posso fazer teologia sem Aquele que revelou as profundezas teológicas (1Coríntios 2.9ss). Não posso desfrutar da vida de Cristo sem Aquele que vivifica (Romanos 8.11). A Teologia deve ser necessariamente pneumatológica. A pneumatologia é constitutiva da teologia e não meramente adornativa.

Antes mesmo das elaborações teológicas: cristologia, pneumatologia e etc., o conhecimento do Pai em Cristo pelo Espírito consistia na primeira realidade experimentada pelos cristãos. Eles não construíam grandes conceitos sobre o Espírito, mas experimentavam o batismo no Espírito e viviam na plenitude dos carismas e na dependência do poder do Espírito. A teologização se seguiu depois. O fazer teológico, a construção da catedral com seus pilares, se seguiu apenas para lidar com a narrativa (o que Deus fez na história) e as doutrinas (a interpretação divina desses acontecimentos), além da doxologia e do discipulado revelados na Escritura. Os cristãos do primeiro século viviam teologia, nós simplesmente estamos limitados a pensar teologia, e às vezes de maneira trôpega. Os cristãos do primeiro século estavam ultra dimensionados na pneumatologia, hoje muitos dentre nós limitamos a pneumatologia.

Uma leitura em qualquer compêndio sobre a História da Igreja logo se descobrirá, em especial no Ocidente, que a obra do Espírito Santo foi minimizada à medida que era transferida para o controle eclesiástico. Líderes vazios e déspotas sempre temeram a ação do Espírito na igreja. Eles sabem que não podem manipular o Espírito, Ele sopra onde quer!

O teólogo católico Yves Congar destaca que, em vez de serem vistos como meios das operações do Espírito, os sacramentos muitas vezes eram considerados eficientes em si e por si mesmos, o que tornou o Espírito um tanto irrelevante. O papa, os santos e a virgem Maria também poderiam tornar-se “substitutos do Espírito Santo”[5]. Como reação, surgiram diversos movimentos espirituais, colocando o Espírito em oposição à igreja e a seu ministério da Palavra e do sacramento. Ocorreu uma ruptura entre a instituição hierárquica, cheia de abusos, e indivíduos carismáticos à procura de uma experiência divina direta e pessoal por meio de visões, milagres e êxtase, mesmo à parte do ministério comum da igreja.

Teólogos como Benjamim B. Warfield, postulam que a Reforma constituiu numa das maiores redescobertas do Espírito Santo. A Teologia Medieval estava distante do Espírito ocupada com outros pontos, enquanto os reformadores começaram a anunciar “que o Espírito incriado é a dádiva que une os pecadores a Cristo com todos os seus benefícios”. Lutero escreveu que “[...] o Espírito Santo me chamou pelo evangelho, me iluminou com Seus dons, me santificou e me manteve na fé verdadeira”. Mas é claro que Lutero criticou veementemente os “entusiastas”.

Reconhece-se amplamente entre os reformados calvinistas que João Calvino contribuiu de modo especial com a mais rica reflexão pneumatológica da época, a tal ponto de receber posteriormente o epíteto de “teólogo do Espírito”. Dentre os reformadores, como observa o teólogo pentecostal Veli-Matti Kárkkáinen, a teologia de Calvino era a mais impregnada pela pneumatologia, embora ele fosse tão crítico quanto Lutero do “entusiasmo” que separava o Espírito da Palavra[6]. Muitos pentecostais se inclinam consciente ou inconscientemente para essa ‘separação’ “entusiástica”, e as observações de João Calvino são saudáveis e pertinentes.

Brian Gaybba, teólogo católico romano, chega a dizer que, “com Calvino, existe a redescoberta — pelo menos no Ocidente — de uma ideia bíblica quase esquecida desde o período patrístico. Trata-se da ideia do Espírito de Deus em ação”[7]. Alguns estudiosos como Matthew Levering[8] e Michael Horton[9] entendem que Gaybba exageram um pouco, mas as riquezas das reflexões pneumatológicas de Calvino não devem ser negadas, mormente por se tratar de uma sistematização no fim do período medieval.

O grande humanista Desidério Erasmo escreveu uma carta desdenhosa a Guilherme Farel, o colega mais velho de Calvino, censurando Genebra: “Os refugiados franceses têm estas cinco palavras de forma contínua em seus lábios: evangelho, Palavra de Deus, fé, Cristo e Espírito Santo”[10]. Apesar de discordamos de certas conclusões teológicas do reformador genebrino, seria idiotice negar a contribuição teológica e pneumatológica de Calvino tanto para Genebra quanto para o mundo.

Os exemplos dos quatro parágrafos anteriores nos fazem pensar que a negligência vista hoje no meio Reformado é um distanciamento de suas próprias raízes. Muitos outros gigantes na História da Igreja poderiam ser citados: John Owen, William Perkins, Richard Sibbes e Thomas Goodwin, Abraham Kuyper e muitos outros. Querendo Deus, oportunamente abordaremos a obra destes eminentes teólogos.

Foi o teólogo metodista Delmar Lyle Dabney que estimulou certo número de não pentecostais, como o teólogo batista Clark Pinnock, a considerar a concessão da primazia ao Espírito em todos os loci[11] da Teologia Sistemática. Digna de nota são as palavras do Dr. Dabney:

Todo locus deveria ser enriquecido pela reflexão pneumatológica e, de fato, defendo a prática e procuro implementá-la neste livro. Entretanto, a pneumatologia deve consistir em uma aplicação da teologia trinitária, pois o Espírito e sua obra são inseparáveis do Pai e do Filho. Como consequência, apenas quando se reconhece a relação do Espírito com as outras pessoas por meio de processões e missões (ou seja, além de todos os loci teológicos), nossa pneumatologia permanece bíblica e presa à economia, e não como um critério separado e mais suscetível à especulação[12].

 

Os pentecostais têm se empenhado nesta tarefa enriquecedora com uma rica reflexão pneumatológica em todas as áreas da teologia. Para citar alguns: Frank Macchia, Simon Chan, Amos Yong, Henry Lederle, Charles Carrin e Wolfgang Vondey para citar alguns.

Postulo que um relato teológico sistemático não deve ofuscar a ênfase espiritual do Movimento Pentecostal. Tal ênfase no Espírito e nos Seus dons, não é mero invencionismo, mas um retorno às Escrituras Sagradas, à vida e ao ministério tal como visto no Novo Testamento nos primeiros cristãos e escritores.

Para sermos bíblicos, não devemos perder o ensino de que junto com o Pai e o Filho, o Espírito está no centro da ação, desde Gênesis 1.2 até Apocalipse 22.17 – não tem como separar a divindade das Pessoas: a ação de um é a ação dos Três, e a cada ação dos Três é a ação de UM. Como bem colocado por Michael Horton: “Cristo é de fato quem nos conduz ao Pai, mas isso só é possível por meio do Espírito. Ignorar o Espírito não só nos priva de encontrar uma pessoa da divindade; se for fraca, a pneumatologia (i.e., a teologia do Espírito) inevitavelmente estimula a distorção de outras doutrinas importantes, incluindo-se as da pessoa e da obra de Cristo”[13].

Creio que estamos diante de um grande avanço nos estudos teológicos. Desde o início do Movimento Pentecostal não apenas os dons e poderes do Espírito Santo têm sido reconhecido nas igrejas, mas também um apreço pela Pessoa e obra do Espírito Santo tem dominado corações e mentes. Eu sou uma delas, e você?

 

 

 

 

 



[1] KUYPER, Abraham. The Work of the Holy Spirit, p.xii. New York; Funk & Wagnall, 1900; reimp., Grand Rapids: Eerdmans, 1979.

[2] A Teologia de Grudem é de atual interesse pelo tratamento de temas ausentes nas demais teologias evangélicas. Cf. GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática: Atual e Exaustiva. São Paulo, SP, Brasil: Vida Nova, 1999.

[3] HORTON, Michael. Redescobrindo o Espírito Santo: a presença santificadora de Deus na criação, na redenção e na vida cotidiana, p.16,17. São Paulo, SP, Brasil: Cultura Cristã, 2018.

[4] HORTON, Michael. Redescobrindo o Espírito Santo: a presença santificadora de Deus na criação, na redenção e na vida cotidiana, p.16,17. São Paulo, SP, Brasil: Cultura Cristã, 2018.

[5] I believe in the Holy Spirit: the complete three-volume work in one volume, Vol. 1, p.160-166. Milestones in Catholic Theology: New York: Crossroad Herder, 1997.

[6] Pneumatology: The Holy Spirit in ecumenical International, and contextual perspective, p.46. Grand Rapids: Baker Academic, 2002.

[7] The Spirit of Love: theology of the Holy Spirit, p.100. London: Geoffrey Chapman, 1987.

[8] Engaging the doctrine of the Holy Spirit, p.321, nota 43. Grand Rapids: Eerdmans, 2016.

[9] HORTON, Michael. Redescobrindo o Espírito Santo: a presença santificadora de Deus na criação, na redenção e na vida cotidiana, p.19, nota 13. São Paulo, SP, Brasil: Cultura Cristã, 2018.

[10] Citado em Emile G. Leonard, The Reformation, in: H. H. Rowley, org., A History of Protestantism (London: Thomas Nelson and Sons, 1965), vol. 1, p. 306,2 vols.

[11] Loci é o plural de locus. O mesmo que: locais, locos, lugares. Lugar determinado; local específico.

[12] Why should the last be first? The priority of pneumatology in recent theological discussion”, in: Bradford E. Hinze; D. Lyle Dabney, orgs., Advents of the Spirit: an introduction to the current study of pneumatology (Milwaukee: Marquette University Press, 2001), p. 240-61.

[13] HORTON, Michael. Redescobrindo o Espírito Santo: a presença santificadora de Deus na criação, na redenção e na vida cotidiana, p.27. São Paulo, SP, Brasil: Cultura Cristã, 2018.

2 comentários:

  1. Graça e paz!
    Muito bom meu irmão, parabéns pelo esforço de trazer esse rico assunto e ensino teológico.

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