Rumo a uma teologia pneumatológica
Precisamos de uma pneumatologia constitutiva, e não meramente
adornativa no Sistema teológico. Constrói-se todo o sistema da Teologia em
categorias teontológica e cristológica, tornando a pneumatologia como algo
extra, um adendo, uma pincelada para prover simetria e equilíbrio ao design teológico. Pronto, terminou o
trabalho Sistemático agora vamos adorná-lo pneumatologicamente!
Abraham Kuyper lamentou no
final do século 19: “Apesar de honrarmos o Pai e crermos no Filho, quão pouco
vivemos no Espírito Santo! Às vezes até pode parecer que para a nossa
santificação concede-se o Espírito Santo apenas por acidente à grande obra da
redenção”[1].
Nota-se claramente o trato tímido do Espírito nas doutrinas bíblicas pelos
Sistemáticos. Apesar de se ver um tratamento mais extenso do Espírito de per si
na Teologia Sistemática de Wayne Grudem[2],
percebe-se logo a ausência do tratamento do Espírito relacionado às demais
doutrinas.
É quase geral ver a doutrina do Espírito Santo como um pensamento
posterior de nossa teologia, por isso se ver o súbito rebaixamento do Espírito
em nossas orações, pregação, ensino, louvor e outros aspectos da vida e
ministério cristão.
Evidentemente, o Pai é Deus, e os protestantes fiéis lutaram
firmemente a favor da divindade plena do Filho. Entretanto, é comum que o
Espírito seja considerado apenas um facilitador do nosso relacionamento com o
Pai e o Filho. Contudo, o Espírito Santo é plenamente Deus no mesmo sentido que
o Pai e o Filho? O Credo Niceno às
vezes nos faz parar para refletir quando dizemos que o Espírito “juntamente com
o Pai e o Filho é adorado e glorificado”?[3]
Sim ou não? Alguns temem adorar o Espírito!
Agora pense comigo: se a tendência de alguns é considerar o Filho
inferior ao Pai, então com certeza a Terceira Pessoa descerá um nível ainda
mais baixo na escala da divindade. Muitas seitas já despersonalizaram o
Espírito, e muitos cristãos estão inferiorizando consciente ou
inconscientemente o Espírito. Quando vejo pastores e teólogos depreciando a
obra do Espírito na vida de cristãos com críticas infundadas e desavisadas,
preocupo-me com o rumo tomado pelo púlpito e pela cátedra.
Meu empenho como pentecostal é explorar o papel distinto do Espírito
Santo em todas as obras externas da Divindade no plano da redenção do mundo e
da humanidade. Leio a Bíblia atentamente procurando entender o que ela diz sobre
o Espírito para poder ouvir o que o Espírito diz às igrejas para depois pregar
o que Ele diz para as igrejas. Se ouvirmos o que a Bíblia diz sobre o Espírito,
escutaremos o que o Espírito nos diz. Quando a igreja ouve a Bíblia, ela escuta
o que o Espírito diz. O Cristo glorificado nos ordena a ouvir a voz do Espírito
às igrejas. Uma igreja que não ouve a voz do Espírito, desobedece ao Cristo
glorificado!
O Espírito Santo não é um soprinho como uma brisa mansinha e dócil,
Ele se manifestou na Era da Igreja como um som estrondoso como de um vento
veemente e impetuoso. Isso quer dizer que o Espírito Santo não é domesticado
pelas nossas teologias, muito menos barrado pelo nosso denominacionalismo, ou
ainda manipulado pela nossa agenda. Todos devem saber que esse som estrondoso
como de um vento veemente e impetuoso não se deixa domar ou domesticar, Ele
sopra – e sopra poderosamente – onde quer!
É dispensável teologias sem uma ênfase distinta pneumatologicamente.
Da Divindade à criação o Espírito está bem presente. O Espírito Santo é
apresentado logo no segundo versículo da Bíblia (Gênesis 1.2), realizando um
papel distinto na criação. Não se pode nem começar a tratar da pessoa e obra de
Cristo (cristologia) à parte do papel do Espírito em Sua encarnação,
ministério, milagres, pregação, obediência, morte e ressurreição. O Espírito
está ali, e bem presente. Foi o Espírito que gerou o corpo humano do Verbo no
ventre de Maria.
Concordo pungentemente com o teólogo Michael Horton: “Qualquer doutrina bíblica autêntica a respeito da
criação, da providência, da pessoa e obra de Cristo, da Escritura, da pregação,
dos sacramentos, da igreja e de escatologia deve incluir um relato robusto da
ação do Espírito”[4].
Menos do que isso, é expor teologia trôpega. Não se pode falar do Pai sem o
Filho e nem do Filho sem o Pai, muito menos falar do Pai e do Filho sem o
Espírito. Não posso fazer teologia sem Aquele que revelou as profundezas
teológicas (1Coríntios 2.9ss). Não posso desfrutar da vida de Cristo sem Aquele
que vivifica (Romanos 8.11). A Teologia deve ser necessariamente
pneumatológica. A pneumatologia é constitutiva da teologia e não meramente
adornativa.
Antes mesmo das elaborações teológicas: cristologia, pneumatologia e
etc., o conhecimento do Pai em Cristo pelo Espírito consistia na primeira
realidade experimentada pelos cristãos. Eles não construíam grandes conceitos
sobre o Espírito, mas experimentavam o batismo no Espírito e viviam na
plenitude dos carismas e na dependência do poder do Espírito. A teologização se
seguiu depois. O fazer teológico, a construção da catedral com seus pilares, se
seguiu apenas para lidar com a narrativa (o que Deus fez na história) e as
doutrinas (a interpretação divina desses acontecimentos), além da doxologia e
do discipulado revelados na Escritura. Os cristãos do primeiro século viviam
teologia, nós simplesmente estamos limitados a pensar teologia, e às vezes de
maneira trôpega. Os cristãos do primeiro século estavam ultra dimensionados na
pneumatologia, hoje muitos dentre nós limitamos a pneumatologia.
Uma leitura em qualquer compêndio sobre a História da Igreja logo se descobrirá,
em especial no Ocidente, que a obra do Espírito Santo foi minimizada à medida
que era transferida para o controle eclesiástico. Líderes vazios e déspotas
sempre temeram a ação do Espírito na igreja. Eles sabem que não podem manipular
o Espírito, Ele sopra onde quer!
O teólogo católico Yves Congar
destaca que, em vez de serem vistos como meios das operações do Espírito, os
sacramentos muitas vezes eram considerados eficientes em si e por si mesmos, o
que tornou o Espírito um tanto irrelevante. O papa, os santos e a virgem Maria
também poderiam tornar-se “substitutos do Espírito Santo”[5].
Como reação, surgiram diversos movimentos espirituais, colocando o Espírito em
oposição à igreja e a seu ministério da Palavra e do sacramento. Ocorreu uma
ruptura entre a instituição hierárquica, cheia de abusos, e indivíduos
carismáticos à procura de uma experiência divina direta e pessoal por meio de
visões, milagres e êxtase, mesmo à parte do ministério comum da igreja.
Teólogos como Benjamim B.
Warfield, postulam que a Reforma constituiu numa das maiores redescobertas
do Espírito Santo. A Teologia Medieval estava distante do Espírito ocupada com
outros pontos, enquanto os reformadores começaram a anunciar “que o Espírito
incriado é a dádiva que une os pecadores a Cristo com todos os seus
benefícios”. Lutero escreveu que
“[...] o Espírito Santo me chamou pelo evangelho, me iluminou com Seus dons, me
santificou e me manteve na fé verdadeira”. Mas é claro que Lutero criticou
veementemente os “entusiastas”.
Reconhece-se amplamente entre os reformados calvinistas que João Calvino contribuiu de modo
especial com a mais rica reflexão pneumatológica da época, a tal ponto de
receber posteriormente o epíteto de “teólogo do Espírito”. Dentre os
reformadores, como observa o teólogo pentecostal Veli-Matti Kárkkáinen, a teologia de Calvino era a mais impregnada
pela pneumatologia, embora ele fosse tão crítico quanto Lutero do “entusiasmo”
que separava o Espírito da Palavra[6].
Muitos pentecostais se inclinam consciente ou inconscientemente para essa
‘separação’ “entusiástica”, e as observações de João Calvino são saudáveis e
pertinentes.
Brian Gaybba, teólogo
católico romano, chega a dizer que, “com Calvino, existe a redescoberta — pelo
menos no Ocidente — de uma ideia bíblica quase esquecida desde o período
patrístico. Trata-se da ideia do Espírito de Deus em ação”[7].
Alguns estudiosos como Matthew Levering[8]
e Michael Horton[9]
entendem que Gaybba exageram um
pouco, mas as riquezas das reflexões pneumatológicas de Calvino não devem ser
negadas, mormente por se tratar de uma sistematização no fim do período
medieval.
O grande humanista Desidério
Erasmo escreveu uma carta desdenhosa a Guilherme
Farel, o colega mais velho de Calvino,
censurando Genebra: “Os refugiados franceses têm estas cinco palavras de forma
contínua em seus lábios: evangelho, Palavra de Deus, fé, Cristo e Espírito
Santo”[10].
Apesar de discordamos de certas conclusões teológicas do reformador genebrino,
seria idiotice negar a contribuição teológica e pneumatológica de Calvino tanto
para Genebra quanto para o mundo.
Os exemplos dos quatro parágrafos anteriores nos fazem pensar que a
negligência vista hoje no meio Reformado é um distanciamento de suas próprias
raízes. Muitos outros gigantes na História da Igreja poderiam ser citados: John Owen, William Perkins, Richard
Sibbes e Thomas Goodwin, Abraham Kuyper e muitos outros.
Querendo Deus, oportunamente abordaremos a obra destes eminentes teólogos.
Foi o teólogo metodista Delmar
Lyle Dabney que estimulou certo
número de não pentecostais, como o teólogo batista Clark Pinnock, a considerar a concessão da primazia ao Espírito em
todos os loci[11]
da Teologia Sistemática. Digna de nota são as palavras do Dr. Dabney:
Todo locus
deveria ser enriquecido pela reflexão pneumatológica e, de fato, defendo a
prática e procuro implementá-la neste livro. Entretanto, a pneumatologia deve
consistir em uma aplicação da teologia trinitária, pois o Espírito e sua obra
são inseparáveis do Pai e do Filho. Como consequência, apenas quando se
reconhece a relação do Espírito com as outras pessoas por meio de processões e
missões (ou seja, além de todos os loci
teológicos), nossa pneumatologia permanece bíblica e presa à economia, e não
como um critério separado e mais suscetível à especulação[12].
Os pentecostais têm se empenhado nesta tarefa enriquecedora com uma
rica reflexão pneumatológica em todas as áreas da teologia. Para citar alguns: Frank Macchia, Simon Chan, Amos Yong, Henry Lederle, Charles Carrin e Wolfgang
Vondey para citar alguns.
Postulo que um relato teológico sistemático não deve ofuscar a ênfase
espiritual do Movimento Pentecostal. Tal ênfase no Espírito e nos Seus dons,
não é mero invencionismo, mas um retorno às Escrituras Sagradas, à vida e ao
ministério tal como visto no Novo Testamento nos primeiros cristãos e
escritores.
Para sermos bíblicos, não devemos perder o ensino de que junto com o
Pai e o Filho, o Espírito está no centro da ação, desde Gênesis 1.2 até
Apocalipse 22.17 – não tem como separar a divindade das Pessoas: a ação de um é
a ação dos Três, e a cada ação dos Três é a ação de UM. Como bem colocado por Michael Horton: “Cristo é de fato quem
nos conduz ao Pai, mas isso só é possível por meio do Espírito. Ignorar o
Espírito não só nos priva de encontrar uma pessoa da divindade; se for fraca, a
pneumatologia (i.e., a teologia do Espírito) inevitavelmente estimula a
distorção de outras doutrinas importantes, incluindo-se as da pessoa e da obra
de Cristo”[13].
Creio que estamos diante de um grande avanço nos estudos teológicos.
Desde o início do Movimento Pentecostal não apenas os dons e poderes do
Espírito Santo têm sido reconhecido nas igrejas, mas também um apreço pela
Pessoa e obra do Espírito Santo tem dominado corações e mentes. Eu sou uma
delas, e você?
[1] KUYPER,
Abraham. The Work of the Holy Spirit,
p.xii. New York; Funk & Wagnall, 1900; reimp., Grand Rapids: Eerdmans,
1979.
[2] A Teologia de Grudem é de atual interesse
pelo tratamento de temas ausentes nas demais teologias evangélicas. Cf. GRUDEM,
Wayne. Teologia Sistemática: Atual e
Exaustiva. São Paulo, SP, Brasil: Vida Nova, 1999.
[3] HORTON, Michael. Redescobrindo o Espírito Santo: a presença santificadora de Deus na
criação, na redenção e na vida cotidiana, p.16,17. São Paulo, SP, Brasil:
Cultura Cristã, 2018.
[4] HORTON, Michael. Redescobrindo o Espírito Santo: a presença santificadora de Deus na
criação, na redenção e na vida cotidiana, p.16,17. São Paulo, SP,
Brasil: Cultura Cristã, 2018.
[5] I believe in the Holy
Spirit: the complete three-volume work in one volume, Vol. 1, p.160-166. Milestones in Catholic Theology: New York:
Crossroad Herder, 1997.
[6] Pneumatology: The Holy
Spirit in ecumenical International, and contextual perspective, p.46. Grand Rapids: Baker Academic, 2002.
[7] The Spirit of Love:
theology of the Holy Spirit, p.100. London: Geoffrey
Chapman, 1987.
[8] Engaging the doctrine of
the Holy Spirit, p.321, nota 43. Grand Rapids:
Eerdmans, 2016.
[9] HORTON,
Michael. Redescobrindo o Espírito Santo: a presença santificadora de
Deus na criação, na redenção e na vida cotidiana, p.19, nota 13. São Paulo, SP, Brasil:
Cultura Cristã, 2018.
[10] Citado em Emile G. Leonard, The
Reformation, in: H. H. Rowley, org., A History of Protestantism (London: Thomas Nelson and Sons, 1965),
vol. 1, p. 306,2 vols.
[11] Loci
é o plural de locus. O mesmo que:
locais, locos, lugares. Lugar determinado; local específico.
[12] Why
should the last be first? The priority of pneumatology in recent theological
discussion”, in: Bradford E. Hinze; D. Lyle Dabney, orgs., Advents of the Spirit: an introduction to the current study of
pneumatology (Milwaukee: Marquette University Press, 2001), p. 240-61.
[13]
HORTON, Michael. Redescobrindo o Espírito Santo: a presença santificadora de Deus na
criação, na redenção e na vida cotidiana, p.27. São Paulo, SP, Brasil: Cultura
Cristã, 2018.